Juliana
Oi, tudo bem? Pra você que me conhece e já viu várias faces e histórias minhas, pode se surpreender com o que venho compartilhar, porque é bem diferente das histórias que vocês estão acostumados a ouvir de mim. Não é mais uma história fofa como um conto de fadas real, ou triste como uma novela mexicana esperando um final feliz. Trata-se, hoje, de uma história que aconteceu há 23 anos. Era 1994, eu tinha só 7 anos e não sabia do que se tratava. Mas hoje eu sei.
Quando o Alejandro me convidou para esse ensaio, dentre outros que já fizemos, o que mais me chamou atenção foi o tema: mulheres falando sobre abuso sexual, abuso emocional ou qualquer tipo de abuso que já tenham passado simplesmente por serem mulheres.
E é a partir da definição de abuso que começo meu relato, voltando no tempo para os meus 7 anos:
Abuso: uso incorreto, uso excessivo ou imoderado de poderes.
... esse foi um período conturbado para a minha família adotiva e para mim. Eu estava nela havia menos de 3 anos, e entre meus 7 e 8 anos perdi minha mãe e meu irmão mais velho em acidentes muitos próximos, o que trouxe uma nova estrutura familiar para nós. De repente éramos só eu , meu pai e minha irmã numa casa enorme e cheia de lembranças.
Tínhamos muitos amigos e principalmente vizinhos que nos ajudaram muito a tentar superar toda dor daquele momento. E entre esses havia uma família muito querida por nós. Eles moravam na casa atrás da nossa e nos ajudavam e eram como tios muito queridos. Esses vizinhos tinham um filho que era um ano mais velho que eu e pouco depois tiveram outro menininho lindo também. Devido à pouca diferença de idade, eu e o mais velho brincávamos juntos frequentemente, assim como brincávamos muito com outras crianças vizinhas, brincadeiras de crianças na maioria das vezes, eu de boneca, ele de carrinho e às vezes as duas brincadeiras de uma vez só.
... Não me lembro bem quando a brincadeira diferente começou, pois eu era muito criança, mas me lembro bem do dia que ele me chamou no quarto dos pais e me mostrou uma revista em quadrinhos onde tinha homens e mulheres nus, juntos, fazendo coisas que eu não entedia bem o que era. Na ocasião, ele, que também era uma criança, disse que era muito divertido e que devíamos fazer também, pois seus pais faziam às vezes e ele via escondido o quanto era legal.
Não me lembro se foi no mesmo dia ou logo depois, que em uma das brincadeiras de casinha ele tirou minha calcinha e se esfregou em mim, assim como na revista. Eu realmente não entedia bem o que era aquilo, e tenho total certeza que ele também não, afinal tínhamos 8 e 9 anos, éramos duas crianças!
Pouco tempo depois disso eu me mudei para um prédio, mas continuamos nos vendo, uma vez que nossas famílias mantiveram contato por serem muito amigas. Entretanto, às vezes, quando ele vinha brincar na minha casa, ele repetia o ato na hora das brincadeiras. Com o tempo e repetidas vezes, achei até que era algo natural e que as pessoas deviam fazer muito aquilo mesmo. E sim, dava algum tipo de prazer que eu não sabia explicar bem o que era...
... Quando eu já tinha meus 12 ou 13 ele me visitou novamente, só que dessa vez eu meio que já tinha entendido o que era aquilo que fazíamos, e morria de medo de alguém descobrir. Eu sentia vergonha de imaginar que meu pai ou irmã descobrissem. E mesmo sabendo que nunca procurei nada, sempre pensava que aquilo era culpa minha.
Então nessa última visita, eu me recordo que ele me chamou para brincar no parquinho do prédio com as outras crianças. Eu fui numa boa, afinal, era com outras crianças, mas não tinha ninguém no parquinho e decidimos voltar pro apartamento. Quando entramos no elevador ele apertou o último andar e falou que iríamos passear de elevador. Mesmo assim ele me fez descer no último andar e me convenceu a descer de escada com ele... lá mesmo ele me abordou, fez um jogo comigo para brincarmos igual quando éramos crianças, “se esfregando”. No momento senti muito medo de dizer não para ele, ele era mais velho e mesmo que pouco, era bem maior e estávamos sozinhos. Aceitei o jogo pedindo por dentro para ele perder e sair logo dali.
Quem perdeu fui eu ...
... Desse momento eu lembro bem, pois assim que perdi ele mandou eu abaixar meu short e me virar de costas pra ele, eu obedeci e fiquei parada com medo do que poderia acontecer. Lembro de olhar para trás e ficar assustada, pois ele já era um adolescente de corpo feito, pelos etc. Ele se acomodou atrás de mim e me tocou algumas vezes, se esfregou. Me senti paralisada e era um misto confuso de medo e prazer, afinal eu era adolescente e também estava descobrindo meu corpo, todavia não estava pronta ainda para aquilo. Quando vi que estava evoluindo para algo mais, inventei algo para ele parar e voltarmos para casa.
Não houve nenhum tipo de abuso físico. Ele não me estuprou ou penetrou, mas naquele momento eu soube que boa parte de mim já não seria mais igual, eu entendi o que os meninos iriam sempre querer, que não era minha inteligência, amizade ou amor, era meu corpo. Quando minha irmã mais velha descobriu, sua única preocupação era sobre minha virgindade. Me lembro de como ela gritava comigo por ter deixado aquilo acontecer, que eu era descuidada, que eu podia ter ficado grávida. Me lembro de como foi humilhante ir ao médico pra ele falar pra ela que eu era virgem ainda e não havia acontecido nada.
Descobri que mesmo nós mulheres nos culpamos. Ela me culpava por ter atraído ele, sendo que eu nem sabia que estava fazendo aquilo. Ninguém procurou os pais dele para falarem com ele: “Olha, garoto, você não pode fazer isso não!”. Não, a bronca foi comigo. Ele podia explorar sua sexualidade, prazeres, mas eu, como menina, NÃO.
Descobri que um homem, por algum direito pré- estabelecido e garantido pela tradição, sempre sentiria que meu corpo seria sua propriedade. A definição de abuso aí se aplica : USO IMODERADO DE PODERES. O poder de achar que meu corpo era dele...
A partir daí, como milhares de mulheres no mundo, passei por todos tipos de abusos que mulheres passam. Um beijo na balada que termina com o cara enfiando o dedo na sua calcinha por debaixo da saia, enquanto te aperta contra a parede pra você não gritar, e se você gritar ou falar algo: “Até parece! Com essa mini saia aí estava querendo o quê, gatinha?” balada dos meus 16 anos; caminhar pela rua e ter um carro te seguindo com um senhor te oferecendo carona pra qualquer lugar, ou te mostrando um maço de dinheiro pra você sair com ele.
Essas e milhares de outras histórias fazem parte do nosso cotidiano e acontecem todos minutos aí mesmo do seu lado, com a sua irmã, com a sua mãe , amiga ou aquela menina do seu lado no ônibus.
Quando isso vai parar? Como vai parar? Eu não sei, mas hoje como mãe de menino tento ensinar para o Miguel o significado das palavras, de que não é não , de que temos liberdade de escolha, que temos que respeitar os outros e, acima de tudo, tento fazer dele o exemplo de homem que eu gostaria de ter conhecido antes de sofrer tantos abusos como esses e outros que ainda não me sinto tão segura para expor assim abertamente.
Como mãe de menina torço para jamais a Pérola passe por algo assim, para que o mundo seja um lugar melhor para as mulheres da geração dela e para que mesmo que nada disso aconteça, ela se sinta segura para me contar qualquer coisa e que eu possa ajudá-la. Ajudá-la a entender que no mundo existem sim pessoas que acreditam que podem possuir as outras pessoas simplesmente por prazer ,que algumas pessoas irão julgá-la inferior apenas pelo fato de ser do sexo feminino, mas que também há pessoas do bem; que o corpo é dela e ela faz com ele o que ela quiser e permitir com quem ela permitir!
E se você sofre ou sofreu algum tipo de abuso físico ou mental, não guarde isso com você, procure ajuda, converse com alguém, nunca acredite, nem por um minuto, que a culpa é sua, não guarde essa dor com você.